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“Afrontosa! (ou a arte ilícita da guerra)”


POR ANDRÉ LIMA


No quarto set de jogo, depois de ter tomado dois passeios do Praia Clube, o Sesi-Bauru se recuperava de maneira magnífica, com um grande destaque para a atacante Polina Rahimova, que pontuaria 24 vezes naquela noite.


Em um dado momento, a azeri, fugindo do bloqueio triplo, corta uma certeira bola enviesada. Muito por conta de ter sido parada algumas vezes seguidas pela escolta adversária, a jogadora europeia dirigiu um olhar para as integrantes da barreira vencida. “Afrontosa! Você pensa que eu não vi o olhar para o outro lado? Eu vi!“, denunciou o narrador Bruno Souza, do Sportv.


Ao analisar a cena algumas vezes, tentando captar essa mirada penetrante de Rahimova, eu encontrei apenas desabafo por ter conseguido superar um obstáculo que se mostrou intransponível em muitos momentos. Ela não enxergava, na minha concepção, Garay, Martínez ou Carol. Para mim, só o que ela via era a barricada tombada depois de tentativas frustradas.


E o que seria uma afronta (ou afronte)? O dicionário Caldas Aulete diz que a palavra significa insultar, ofender. Observado isto, verificamos que Rahimova é expert do ato em quadra. Uma pesquisa rápida mostra uma infinidade de gritos na cara de adversárias do Fluminense, SESC-RJ, russas, casaques, holandesas, etc. E tudo muito rápido, em uma fração de tempo. Precisei de replay, câmera lenta e umas esfregadas nos olhos. Totalmente reincidente nos crimes. Ou seja, Bruno Souza tem mais olhos, ouvidos, experiência e malícia que eu.


E qual intenção de uma afronta? Penso eu que o objetivo maior é berrar superioridade, desestruturar um adversário, pois, uma vez que se deixa envolver pelos insultos, ele perde foco no que realmente importa, o seu próprio desempenho. “Se o cara que estiver do outro lado não tiver psicológico, vai pilhar e errar tudo“, confirma a técnica Tati Lima, da Cia de Vôlei, equipe masculina da Liga A da LIVERJ. “O amadurecimento ajuda muito. Jogo desde os 14 anos no MEC e aprendi a lidar com a pressão dentro de quadra. Tínhamos vários trabalhos voltados para isso, até psicóloga”, pontua Claudinete Faria, atleta do Vôlei Cocotá.


“Arte da guerra“, de Sun Tzu, livro de cabeceira de comandantes como Bernardinho e Luiz Felipe Scolari, afirma que “existem cinco perigos que podem afetar um general“. Um deles nos interessa profundamente no tema investigado: “temperamento precipitado, que pode ser provocado por insultos”. Em compensação, Maquiavel, em “O Príncipe“, chega com um método, “Eu creio que um dos princípios essenciais da sabedoria é o de se abster das ameaças verbais ou insultos”. Isso levando em consideração que cada jogador é general de si mesmo quando está em disputa.


Algumas provocações são cantilenas como “pode sacar na posição cinco porque não tem passe“, “o ataque é caixinha“, “aqui no bloqueio não passa nada“, “só tem bola na ponta”. E também são clássicas as gritarias, as palmas, as dancinhas, pisadas fundas e o falatório de técnicos como estratégia para desordenar o oponente. Em meu parecer, todos esses recursos entram no pacote da afronta.


Falando de desfeitas, a memória me conduz ao meio da década de 90, quando jogadoras da seleção cubana entraram em quadra com bobes no cabelo, na partida contra a seleção brasileira, em jogo válido pela Copa do Mundo de Vôlei Feminino de 1994, como se quisessem mandar a mensagem de que as adversárias nem as despenteariam, o que aconteceu de fato.


O quarto set da partida entre Brasil e Cuba, pela disputa da semifinal em Atlanta-1996, guarda o nascimento do afronte de todos os afrontes. Foi exatamente quando a cubana Mireya percebeu que a disputa da medalha de ouro estava naquele combate, e que as brasileiras estavam bem e confiantes no jogo. Precisava tomar uma atitude. Decidiu cercar a rede com arame farpado e dotar de eletricidade, verteu a limitação em uma fronteira entre países inimigos e disparou os xingamentos mais sujos que se possa imaginar às atletas brasileiras. Até cusparadas foram adicionadas à fórmula naquela pendenga.



No documentário “Pátria”(2012), de Fábio Meira, Ana Moser e Fernanda Venturini, craques daquele time brasileiro, chegaram a falar do incômodo produzido pelos gestos antidesportivos. “Nesse jogo especial, elas conseguiram. Algumas jogadoras erraram por excesso de vontade de acertar”, acrescenta Virna, outra integrante daquela geração.


Ao final do jogo, com a vitória cubana confirmada, é impactante ver que a quase totalidade das atletas caribenhas, em vez de se preocupar com a comemoração e proximidade do título, ainda estava preocupada em dar continuidade aos desaforos desenvolvidos ao longo de dois sets. O ódio vicia. A imagem de Regla Bell liderando o exército vestido de branco, diante de uma solitária Ana Moser, com um dedo em riste e pedindo respeito, daria um quadro realista para simbolizar toda uma época. A batalha campal se estendeu aos vestiários e virou história. Por incrível que pareça, um acontecimento que ainda deixa mágoas e marcas depois de mais de vinte anos.


Os ultrajes, acintes, insultos, afrontas ou afrontes, seja que lá que nome você queira dar, embora mais comedidos que os de Mireya, Torres e Carvajal, continuam circulando por quadras onde duelam amadores ou profissionais. Ganharam sofisticação e velocidade para fugir dos olhares dos juízes e das transmissões televisivas, mas continuam ali para fazer as vezes de um punhado de terra que é jogado no olho de um concorrente para obter um possível ganho no quesito nervos.

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