Por André Lima
O técnico Luis Felipe Almeida, 52, que atravessa gerações no município de Quissamã (foi paizão das atletas e é um vovô jovem dos filhos delas), é um daqueles homens que tem a serenidade no olhar e que sabe passar esse estado para as suas atletas. Depois de algumas abordagens às jogadoras, descobrimos que o treinador tem uma serenidade interna apta para fazer muito monge budista berrar. Um sujeito de poucas palavras, muito afeto e de rigor quando se trata de sua paixão pelo vôlei e pela excelência do jogo. E é o cidadão que vai inaugurar a nossa coluna de entrevistas, Tempo Técnico, que se dispõe a traçar um perfil dos treinadores que desfilam seus estilos e estratégias nas quadras da Liverj.
1. Como o vôlei escolheu você?
Eu escolhi o voleibol com 14 anos. Na época de escola, a AABB de Campos estava montando um time e foi onde eu fiquei até os 17 anos.
2. Como você se definiria como atleta?
Eu sempre fui um atleta muito esforçado, muito dedicado. O horário do treino costumava ser 21h, 22h. Mesmo assim, eu ia treinar. Chegava em casa por volta de meia-noite, e minha mãe já estava esperando na varanda, preocupada por causa do horário. E eu também tinha hábito de jogar com pessoas mais velhas. A partir daí, aos 17 anos, eu fui fazer faculdade de Educação Física, em Volta Redonda. E lá eu fiquei jogando pelo time da universidade. E no meu segundo ano eu fui trabalhar no clube ligado à Companhia Siderúrgica Nacional. Só depois disso é que vim para Quissamã, onde sou um funcionário concursado e estou trabalhando até hoje.
3. A sua equipe pede que você seja um treinador mais motivacional ou tático?
Sou mais um treinador tático. A motivação vem muito em função da estratégia de jogo. Não adianta ter motivação se não houver equilíbrio tático, técnico. A motivação vem depois.
4. Foco, família e tranquilidade são palavras que aparecem com frequência quando jogadores e colegas fazem referência a você. Porque você acredita que isso ocorra? Essa equipe que atua comigo em Quissamã já tem muito tempo de formada. Muitas atuam há 15, 20 anos no vôlei, época de Mirim e Infanto. Pararam para fazer faculdade e formar família. Muitas delas são mães hoje. A questão da família e do foco vem do tempo em que nos conhecemos e trabalhamos juntos, então a tranquilidade vem da convivência. Hoje a maioria vem treinar e traz os filhos e os maridos para assistir os treinos. Essa família que existe hoje vem de um contato já com os pais e mães das atletas.
5. A tranquilidade em quadra também é interna?
Eu sempre fui muito tranquilo. Poucas coisas me deixam irritado. E essa tranquilidade foi a que busquei passar constantemente para os atletas. É claro que tem horas em que fico mais estressado, dependendo do momento do jogo, mas eu fui uma pessoa centrada quase todo tempo.
6. O que faz você perder a cabeça em quadra?
Poucas coisas. A sacanagem de um técnico querendo levar vantagem, sem respeitar as regras do jogo; uma arbitragem tendenciosa.
7. Como você cobra questões como alimentação e repouso para as atletas?
É como eu já tinha falado anteriormente: são meninas que jogam comigo há muito tempo. Por elas já jogarem há muito tempo, elas conhecem a dinâmica de trabalho. Quando elas eram mirins, infantos, nós orientávamos. Hoje não precisa de orientação. A maioria já é mãe. Elas sabem da necessidade de ter repouso antes dos jogos, de fazer uma alimentação saudável. A parte física, para muitas, já é feita de forma independente na academia. É uma equipe madura, que treina duas vezes por semana, uma hora por treino.
8. Quissamã é uma equipe com famílias estabelecidas e horários muito diversos. Como conseguir reunir todo mundo e ainda jogar o vôlei de alto nível que a LIVERJ assiste há alguns anos?
A equipe foi montada com meninas adultas e outras na faixa etária de 16 a 18 anos, que já jogava um tempo, participaram da LIVERJ na categoria de base. Juntamos o grupo com as meninas de Macaé e foi com essa base que resolvemos montar a equipe no primeiro ano. Muitas atletas de Quissamã, essas mais velhas que jogam hoje, não podiam treinar e não teriam como jogar. Aos pouquinhos nós fomos montando a equipe para chegar no nível temos hoje, a maioria de atletas da nossa cidade com algumas jogadores de fora de cidade.
Treinamos duas vezes por semana, uma hora, uma hora e meia de treino, pois muitas não têm com quem deixar os filhos à noite. A maioria trabalha o dia inteiro. Não é uma coisa muito simples. As pessoas podem pensar que é fácil, mas temos tanta dificuldade quanto nos grandes centros. Mesmo assim, desgaste daquilo te falei a maioria são masters, acima de 30 anos, e que nem sempre estão disponíveis para treinar e para jogar. Temos atletas de Campos em Macaé, e nem sempre elas podem vir treinar. Aí optamos por treinar em parte do tempo com o grupo de Quissamã, com as meninas de fora do município vindo uma vez por semana.
Ainda assim, são meninas muito dedicadas, não ganham nada por isso, fazem porque gostam realmente. Eu fico muito feliz em feliz em ver o quanto elas se dedicam para representar o município. Até as jogadoras de fora, que vem sem receber nada, gastam dinheiro de combustível, de passagem, para vir treinar.
9. Qual o valor de uma derrota?
A derrota, às vezes, tem um significado maior que a vitória. É pela derrota que nós conseguimos colocar o equilíbrio emocional na equipe. E na derrota que conseguimos mostrar que nem tudo está dando certo.
10. O público de Quissamã é bastante ativo nas redes sociais durante os jogos do time. Como você sente esse contato no dia a dia?
Quissamã tem uma característica muito esportiva. É uma cidade que tem poucas opções de lazer, então as pessoas buscam lazer no esporte. Isso acontece muito com o voleibol, também. As famílias sempre estão presentes nos jogos, costumam ir nas viagens em algumas ocasiões. No primeiro ano que participamos, ficamos em segundo lugar, só perdendo para o Estrelas na final. Tivemos mais de 3000 visualizações nesse jogo. Ter esse número de visualizações é algo muito grande. Penso que nem a Superliga tem esse número em alguns jogos. O que quero é que a população abrace a equipe, assista os jogos pela internet. O povo gosta muito da competição.
11. Houve uma situação no Espírito Santo em que você se excedeu para fazer uma defesa de suas atletas. Como foi esse episódio?
O caso do Espírito Santo aconteceu em uma competição que jogamos há uns três anos. Uma competição boa, equilibrada, mas teve um momento do torneio que foi muito estressante. Nós estávamos jogando a fase classificatória ainda quando tudo ocorreu. Quando estava para começar o torneio, começou a chover, e o ginásio tinha muita goteira. Em determinada hora, a organização e a arbitragem decidiram encerrar a competição por aquele dia, liberando as atletas para jantar. Quinze minutos depois, chegou o coordenador dizendo que tínhamos exatos 15 minutos para retornar ao ginásio para jogar. As meninas estavam ainda com prato na mesa, não tinham acabado de jantar. E nós fomos revoltados para jogar. Fomos e ganhamos a competição. Foi um desgaste muito grande, mas aprendemos muito. Apesar da sacanagem que fizeram, nós conseguimos manter o equilíbrio e vencer a competição.
12. A equipe venceu vários jogos da LIVERJ por conta da excelência nos saques e bloqueios. Qual é a atenção oferecida a esses fundamentos em seus treinos?
O saque é o início de um jogo. Quando se saca bem, facilita muito para o bloqueio, para a defesa. O saque é um dos fundamentos mais importantes de um jogo. Quando se saca bem, você tem uma vantagem com relação ao adversário. Facilita no bloqueio, na defesa, no contra-ataque. Hoje nós temos uma equipe mais alta, mas sempre jogamos muito com o saque.
13. “A repetição leva à perfeição”. O quanto você se identifica com essa fase?
Não só no voleibol, mas também em outros esportes, a repetição faz toda diferença. Vai muito da criatividade do técnico para mudar essa repetição, o estilo de fundamento. O vôlei é um esporte completamente diferente dos outros. No basquete, você tem como recuperar a bola e não levar o ponto. Não é o caso do vôlei. Todo erro gera um ponto. Nessa primeira fase de treinamentos, nós estamos usando muita repetição com ênfase em exercícios que usávamos lá na base. A repetição com certeza leva à perfeição.
14. Em uma transmissão recente de um jogo da Superliga, houve uma discussão sobre a especificidade do estilo de um líbero para o esquema de um técnico. Ou seja, uns priorizam os especialistas em defesas; outros, os que tem bom passe. Você se preocupa em formar atletas completos ou lida naturalmente com as características deles?
No nosso caso, em relação a preocupação de formar, quanto ao líbero, nós temos aqui jogadores que jogam de Líbero e que já estiveram em outras posições. Por exemplo, a Raquel, que é a nossa levantadora hoje, já jogou como atacante de meio, de ponta e como líbero na base. Temos também a Bruna que esteve em uma série de posições. A Monique, de Macaé, também é bastante versátil. Hoje se eu tivesse minhas especialistas ausentes, teria tranquilamente umas quatro atletas para fazer o papel do líbero. Isso porque trabalhamos tudo isso desde a base, não nos limitando apenas a uma posição. Nós temos que pensar no futuro, independente da altura da atleta.
Até mesmo no profissional, eu duvido que exista um atleta que começou jogando como líbero. Dificilmente você visa uma posição no mirim e enxerga um atleta atuando nela futuramente no adulto.
(Agradecimentos carinhosos às atletas Bruna, Camilla, Iara e Raquel pelo auxílio ao longo da preparação)
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