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“No princípio era o verbo”

POR ANDRÉ LIMA


“Acredito firmemente que a hora mais importante de qualquer homem e sua maior realização, o que ele mais ama, é aquele momento em que ele trabalha com toda sua força por uma boa causa e fica exausto no campo de batalha, vitorioso.” Vince Lombardi (1913-1970 / Jogador e Treinador de Futebol Americano)


A palavra sempre teve um poder enorme em trazer para a superfície o melhor de cada atleta. Se bem aplicada, a letra é capaz de operar façanhas nos brios dos competidores. Acreditar é o primeiro passo para a escalada de conquistas épicas. É possível voltar ao passado e visualizar um descabelado Zagallo, antes das cobranças de pênaltis contra a Holanda, na Copa de 1998, sacudindo os atletas, afirmando que a vitória seria um fato. E foi. Sou capaz de apostar com o leitor que a carta branca do técnico deixou cada cobrador mais tranquilo, mais leve.


A preleção é um importante recurso que o treinador possui antes de jogos importantes e situações decisivas para o time. E ela serve como combustível para o desenrolar de uma partida. Basta que haja conexão entre o homem de frente e seus seguidores. A voz do líder fica armazenada na memória para se manifestar quando as conjunturas observadas nos estudos se mostrarem presentes. Alguns comandantes alimentam o expediente com trechos de filmes, poemas, músicas, recortes de jornais, declarações ofensivas veiculadas na mídia ou um olho no olho para trazer o esportista em corpo e alma ao ambiente de jogo. Tudo é válido para fazer com que o emocional entre em cena de forma positiva para o conjunto.


“A preleção é uma etapa muito importante que precede as competições. É o momento em que o técnico(a) passa as últimas orientações para sua equipe. Neste contato com os atletas as instruções podem ter caráter motivador, informativo (técnico e tático) ou de suporte emocional.

É importante que numa boa preleção o técnico leve em consideração aspectos como os fatores motivadores de sua equipe, o grau de comprometimento dos atletas e o padrão das relações intergrupais. Conhecer os atletas é fundamental para que o técnico(a) tenha seu discurso aderido pelo grupo.

Outro ponto de igual relevância é o grau de ativação mental dos atletas durante a preleção. Deve-se considerar o nível de atenção e concentração do grupo para modificar, quando necessário, o tom da voz, o tempo do discurso, o uso ou não de vídeos, a luminosidade do local para, enfim, direcionar o tipo de instrução.

Em momentos decisivos o perfil do grupo vai determinar qual tipo de orientação deve ser apresentada aos atletas. Uma equipe autossuficiente pode preferir orientações curtas e diretas e valorizar mais o discurso técnico. Equipes mais dependentes ou inseguras podem precisar mais de suporte emocional e um discurso mais motivador. Por este motivo não existe um padrão ideal de preleção. Cada grupo tem uma característica. Cabe ao técnico(a) saber como adequar o seu discurso às necessidades de sua equipe.”, diz a psicóloga esportiva Daniele Muniz


“Tento trabalhar já no meu treino que antecede ao jogo, a parte tática, estratégica e psicológica.

A preleção é de extrema importância. Nela consigo dizer quais procedimentos que serão adotados , estratégias a serem utilizadas, instruções táticas e técnicas sobre o jogo em questão. Utilizo em diversos momentos uma preleção individual além da coletiva. Falo com cada atleta quais são os pontos fortes e fragilidades do adversário, e como podemos usar o nosso individual a favor do coletivo, até mesmo para controle de ansiedade, que é um fator natural dependendo da grandeza do jogo. Gosto de abranger os aspectos emocionais, dar aquela palavra de incentivo, aquela frase motivadora , com o nível de motivação alto, a performance também acaba sendo elevada!”, endossa o técnico Diogo Corrêa, da Casa dos Açores, equipe campeã em várias categorias da LIVERJ


Antes da final olímpica de 2008, contra os Estados Unidos, o técnico Bernardinho utilizou o poema “Se”, do escritor anglo-indiano Ruyard Kipling. O texto de carga altamente emotiva (“se consegues preencher cada implacável minuto/ com 60 segundos que vale uma pena ser vividos,/ é tua terra e tudo que nele existe,/ E- o que ainda mais - então, meu filho,/ Serás um homem”) impulsionou a performance brasileira, que, embora não fosse a vencedora, superou muitas adversidades para fazer um desfecho digno contra os americanos.


Há também o efeito contrário, aquele em que o emissor de uma preleção não consegue fazer com que seu público capte a mensagem. Jürgen Klopp, do Liverpool, à época no Borussia Dortmund, tentou utilizar cenas de Rocky IV para fazer que com que seus atletas vissem relações entre eles e o combate entre a máquina de matar Ivan Drago e o perseverante Rocky Balboa. O alemão gostaria muito que seus comandados vissem a semelhança entre a realidade do Dortmund, um dificílimo jogo contra o fantástico time do Bayern de Munique, e a ficção do lutador ítalo-americano. Não enxergaram nada. Faltava-lhes a referência que Klopp, um adolescente no auge da franquia Rocky, tinha do personagem. A referência do treinador bateu na parede e foi escorrendo como um personagem agredido de desenho animado.


Sarah Rosa, jogadora do Superset, descreve uma situação em que o indefectível Jorge Mattos, ex-Vôlei Cocotá, tomou suas atletas pelas mãos e executou um Pai Nosso. Com um clima estranho, de tensão, antes de um momento decisivo na Taça Bronze de 2018, o bravo Jorge foi criativo e usou a arma que tinha em mãos. Seja você de que credo for, ou que não tenha nenhuma religião, ficará satisfeito em saber que o treinador arrancou o peso de seu grupo e trouxe o alívio com choro coletivo e uma sensação de paz para atuar na medida necessária.


Adepto da preleção por treino, da construção coletiva e da audição apurada do que acontece em seu entorno, o treinador do CQV Diogo Batista já se viu em sérios apuros em um torneio em que a vitória não vinha de jeito algum. Não importava que parte da quadra o time da UERJ tomava no Oásis Clube, as nuvens negras pairam sobre as cabeças das meninas de azul e vermelho. Cada uma tinha o seu ponto de cinzas e trovoadas na coroa. Lá pelas tantas, o grupo decidiu trocar o discurso e o aquecimento por uma ciranda. Isso é se comunicar pela alma. E foi assim que a vitória retornou (pelo menos um set), e logo em cima do time mais forte da competição. Vocês dirão que a vitória completa não veio , mas Diogo ganhou um vislumbre do céu de brigadeiro com a leveza.


Os treinadores mais antigos do futebol usavam a tática de compilar manchetes de jornal em que os adversários fossem soberbos, que cantassem vitória antes do tempo ou que falassem mal de sua equipe. Raposas velhas como Antônio Lopes e Pinheiro colavam as notícias e as usavam como ponto de partida para provocar o sangue nos olhos dos atletas.


Biblicamente falando, o verbo se fez antes de qualquer ação. E creio eu que fosse para que a palavra servisse sempre de bússola para os gestos. No livro “Transformando Suor em Ouro”, de Bernardinho, o técnico multicampeão diz que “com meia dúzia de palavras, Bené me mostrou quanto vale ser parte de uma equipe”. O lendário treinador Benedito da Silva, o Bené, usou o verbo para ensinar “como o “nós” é sempre mais importante do que o “eu”. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Bené, e o Verbo era Bené.

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